Conferência Brasil – XVI Congresso Nacional da Pastoral Familiar no Brasil – 27 de agosto de 2022[1]

Mons. Philippe Bordeyne Presidente do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família

  Bom dia a todos! É uma grande honra para mim me dirigir, nesta manhã, aos participantes do XVI Congresso Nacional da Pastoral Familiar no Brasil! Eu tinha projetado viajar para estar presente no Brasil, mas tive que renunciar. Portanto, é por meio deste vídeo que eu me faço próximo de vocês. Quero primeiro agradecer a Dom Ricardo Hoepers, bispo de Rio Grande e Presidente da Comissão Episcopal e Pastoral para a Vida e a Família, bem como ao assessor desta Comissão, Pe Crispim Guimarães e ao casal encarregado da coordenação da Pastoral Familiar no Brasil, a quem desejo tudo de bom para a nova missão. Agradeço, enfim, ao Pe Rafael Fornasier, diretor da seção brasileira do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família pela tradução de minha conferência. “O amor familiar, vocação e caminho de santidade”: retomando o tema escolhido para o encontro mundial das famílias, que ocorreu em junho passado em Roma e em diversas dioceses do mundo, vocês me dão a possibilidade de retomar as implicações teológicas tais como eu as percebo desde o meu início de função no Instituto João Paulo II em Roma, no mês de setembro do ano passado. Eu farei isso sem esquecer que estamos em meio a um caminho sinodal até 2023, que dá lugar a uma intensa atividade de escuta e de discernimento dos chamados de Deus que concernem o matrimônio e a família. No número 37 da Amoris Laetitia, o Papa Francisco convida todos os agentes pastorais a estarem atentos à maneira pela qual as famílias “respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas.” Assim fazendo, ele nos pede para estar atentos ao caminho e à obra de santidade que se opera nas famílias, com a ajuda da graça de Deus. Com efeito, esta frase do Papa Francisco contem uma definição implícita de santidade, que eu gostaria de explicitar na introdução desta conferência.
  1. Responder ao Evangelho, e fazê-lo da melhor forma possível, é caminhar num caminho de santidade. Em todas as épocas, em todas as culturas e em todos os estados de vida, os santos são pessoas que se deixam tocar por Jesus, pelo seu Evangelho, pelo anúncio do Reino que vem, uma Boa Nova sempre atual. Haja vista que Jesus os tocou, eles têm um imenso desejo de conformar sua vida ao Evangelho de Jesus. Os santos são, portanto, animados por uma grande ambição.
  2. Em seguida, é necessário que esta ambição chegue ao concreto. As grandes aspirações, as grandes ideias não são suficientes: elas devem se encarnar na realidade. É o que nos ensina também o caminho de Jesus, pois sua missão de inaugurar o Reino de Deus fez com que ele se humilhasse nas condições concretas de seu tempo e de sua cultura, e atuar com as pessoas reais, não as pessoas sonhadas. Para Jesus, o anúncio do Reino se chocou com todo tipo de resistência, que o conduziram até a Cruz. Para nós também a ambição de nos tornarmos santos passa pelo trabalho de discernimento sobre as modalidades externas e sobre as condições internas de realização. Ser santo é, portanto, ser suficientemente realista a respeito de seus próprios limites e daqueles dos outros.
  3. Caminhar no caminho de santidade é se deixar animar pelo poder da renovação do Evangelho, é ter a coragem de inovar para os tempos novos. O Papa Francisco diz isso com frequência e ele disse novamente com palavras espontâneas durante a missa de encerramento do encontro mundial das famílias em Roma, dia 25 de junho passado: não sonhemos em voltar atrás. Vamos adiante com a força do Espírito Santo! Desde que passei a morar em Roma, gosto de ir regularmente em Assis para mergulhar de novo na liberdade de São Francisco. No início do Século 13, ele percebeu que as mudanças sociais eram tão grandes que era preciso ter a audácia de inventar novas formas de fidelidade ao Evangelho. Foi o nascimento das ordens mendicantes, numa busca de simplicidade evangélica, de comunhão com a criação, de disponibilidade para os pobres e doentes, de clareza num estilo de vida inspirado por Jesus Cristo.
Leiamos de novo o convite do Papa Francisco aos agentes pastorais à luz deste breve comentário. Quando ele nos pede para estarmos atentos à maneira pela qual as famílias “respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas”, ele nos pede para estarmos atentos à caminhada de santidade delas, à ambição delas, ao realismo delas, à capacidade delas de inovar. Sem ignorar as dificuldades que o mundo atual coloca à vida familiar, o Papa lança um olhar positivo sobre as famílias em razão da certeza que a fé traz, ou seja, que um caminho de santidade começa para cada um no dia de seu batismo pelo dom do Espírito Santo. Em seguida, a vida na Igreja nos acompanha e nos fortalece nesse caminho. Tornar-se santo e se deixar tomar pela caridade, esta virtude teológica que nos faz viver a vida mesma de Deus, nos permitindo, assim, entrar em comunhão com ele e com todas as criaturas que seu amor infinito suscita a cada instante. Deslumbrado por esse mistério de comunhão, São Paulo se exclama na carta aos Coríntios: “Se eu não tiver a caridade, de nada valeira” (1 Cor 13,3). Apoiando-me nesse convite a servir o trabalho do Espírito na vida das famílias, eu desenvolverei minha intervenção em três etapas: 1 – Algumas grandes características do mundo atual com as quais as famílias são confrontadas; 2 – Melhor compreender a obra de santidade que se opera nas famílias atuais, a fim de melhor acompanhá-la; 3 – Promover novas práticas familiares de santidade.   1 - Algumas grandes características do mundo atual com as quais as famílias são confrontadas   Para discernir o caminho de santidade no qual estão comprometidas as famílias, os agentes de pastoral devem medir as mudanças que afetam o cotidiano delas. Haveria obviamente muito a dizer sobre essas mudanças. Dentro dos limites desta conferência, gostaria de sintetizar evocando os efeitos sistémicos das mutações tecnológicas, que interagem com a vida e as culturas das famílias. Falar dos efeitos “sistémicos” quer dizer que se pode extrair de tudo quanto eles nos moldam e têm um impacto antropológico profundo: eles influenciam nossas emoções, nossa maneira de entrar em relação com os outros...e, portanto, também com Deus! Não nos esqueçamos que cada um tem doravante acesso à Palavra de Deus em seu celular, se se deseja e se as informações concorrentes não passam na frente. É possível aprender a transitar de maneira harmoniosa por meio dessas novas realidades, mas, para isso, é preciso novos aprendizados.

a) Essas transformações são essencialmente devidas à revolução digital que marca uma nova etapa na sucessão das revoluções industriais e que acentua as tendências anteriores da sociedade de consumação. Com nossos cartões bancários o mercado penetra no interior de nossas vidas, da de nossos jovens, deixando à beira do caminho os mais pobres, aqueles que essas novas formas de comunicação e de consumação marginalizam.

A revolução digital acentua o fenômeno de crescimento permanente da velocidade induzido pela intervenção do motor a combustão que permitiu reduzir as distâncias por meio do carro e do avião. Desde então, é a velocidade da comunicação que afeta nossas vidas, reduzindo as distâncias que nos separam da informação: não há mais necessidade de ir comprar seu jornal, de visitar a biblioteca. Recebemos tudo isso no computador ou no celular, com, para além dos textos, uma capacidade de pesquisa ativa de informação diante da qual nós não somos mais, portanto, somente receptores passivos. Entretanto, não somos atores totalmente livres, já que sofremos permanentes solicitações que penetram nossa intimidade, desde o despertar até ao se deitar. Somos alvos e prezas dos algoritmos para todo um conjunto de iniciativas administrativas ou comerciais, nossas emoções e nossos desejos são exacerbados por uma multidão de imagens e de palavras bem escolhidas, face às quais o livre arbítrio é vulnerável. A crise sanitária da Covid-19 foi construída na revolução digital de tal modo que ela acelerou as transformações em curso. Descobrimos as videoconferências que têm agora relações de trabalho, o comércio on-line ganhou um crescimento considerável, as relações amigáveis e familiares se desenvolveram de novo por meio das redes sociais. É fato que na ponta dessa cadeia virtual se encontram pessoas de carne e osso: essas que trabalham em suas casas ou nos comércios, nas profissões da construção civil, nos hospitais, nos setores de assistência, mas também as pessoas que são excluídas do mundo das comunicações digitais em razão de sua idade ou de sua pobreza. O digital acentua assim a fragmentação social. E para as pessoas que estão bem inseridas socialmente, emergem os problemas de estresse, de vício às imagens às solicitações mercantilistas, dentre as quais se encontra a pornografia. Observa-se igualmente que é difícil fazer valer seu “direito à desconexão” face ao emprego ou simplesmente face aos hábitos dominantes. É claro, todos esses fenômenos afetam a vida familiar, que beneficia das possibilidades de entrar em relação ofertadas pela comunicação digital, mas que também sofrem com a intrusão dos celulares e outros aparelhos digitais no lar, tornando mais difíceis as partilhas. Com efeito, cada um de nós é suscetível de fugir para o mundo virtual, de se extrair dos momentos de convivialidade familiar, a começar pelas refeições interrompidas pelas ligações telefônicas, os SMS e o flux das redes sociais. Nesse contexto, é igualmente mais difícil fazer a distinção entre a família, o trabalho e a diversão. Esse novo contexto, mais emocional, conduz igualmente a fenômenos de polarização, de oposição frontal entre grupos que se constituíram, cada um, em torno de um consenso moral ou de uma comunidade de experiência (por exemplo, os anti-vacina). Resumindo, a revolução digital impõe a todos os cidadãos, desde a mais tenra idade, um misto de novas potencialidades e de contrariedades sociais que se traduz por uma “aceleração” geral, para retomar o título de uma obra do sociólogo e filósofo alemão Hartmut Rosa (2005).

b) Duas outras características de nossas sociedades submetidas à revolução digital são também de grande importância para compreender o que atualmente está em jogo nas famílias. Primeiramente, nossa época é propícia aos aprendizados. A explosão das profissões do digital, indo da programação à inteligência artificial, passando pelo marketing digital, conduziu os cidadãos a reorientar sua vida profissional, a seguir várias vezes em sua vida formações permanentes, e a até mesmo gerir por eles mesmos o percurso formativo ao longo da vida graças às transformações on-line acessíveis a partir de seu domicílio no seu espaço de tempo livre. Além disso, a ergonomia das interfaces digitais solicita o aprendizado permanente: os utilizadores são levados a explorar sempre mais o potencial de seus computadores e seus aplicativos. Enfim, os jovens sendo frequentemente mais ágeis que os mais velhos no manejo dos aparelhos digitais na medida em que eles são os “nativos digitais”, assiste-se a uma inversão dos processos de transmissão entre as gerações, o que favorece o aprendizado permanente e recíproco no seio das famílias em especial.

c) Em segundo lugar, nossa época tem necessidade de comunidade. A escalada dos comunitarismos, os fenômenos de polarização e de violência, a marginalização social das populações mais deserdadas, todas essas tendências acentuam a necessidade do vínculo social. Elas contribuem igualmente, e felizmente, para estimular a criatividade social sob novas formas. As famílias se tornam assim os espaços de imaginação social, laboratórios de vida comum e de fraternidade no momento em que a velocidade das mutações sociais coloca em crise todas as grandes instituições sociais: a escola, a democracia, a Igreja. A família é também frequentemente apresentada como uma instituição, mas a decomposição das formas de vida familiar faz com que seja mais difícil atualmente considerá-la como tal. Ao contrário, como ela é o lugar dos afetos e do amor, ela continua dando prova de uma espantosa resiliência que corresponde sem dúvida àquilo que o Concílio Vaticano II põe em evidência quando ele apresentava a família como “uma escola de enriquecimento humano” (GS, 52), dito de outro modo, um espaço social de tal modo precioso que se presta à experimentação e aos aprendizados fundamentais.

  2 – Melhor compreender a obra de santidade que se opera nas famílias atuais, a fim de melhor acompanhá-la.   Haja vista que a obra de santidade se opera no mudo tal como ele é tal como ele é em transformação – e não tal como nós o sonhamos – é importante ter em mente essas grandes características do mundo atual para melhor compreender o que está à obra, com a ajuda do Espírito Santo, nas realidades familiares. A este respeito, faço a proposta de que é importante atualmente fazer uma teologia da sinodalidade antes de fazer uma teologia da família, pois a sinodalidade nos coloca em disposição para melhor “escutar o que o Espírito diz às Igrejas”, a fim de que sejamos fieis ao alerta muitas vezes repetido no livro do Apocalipse (“Aquele que tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas”), que o Papa Francisco retoma no seu discurso de 17 de outubro de 2015 sobre a sinodalidade. Com efeito, escutar as necessidades do mundo e da Igreja nos permite afinar nosso olhar em face daquilo que, nas realidades familiares tais como elas são vividas na complexidade de nosso mundo, traz inícios de respostas concretas a estas necessidades.

a) As necessidades expressadas graças ao caminho sinodal em direção a 2023

Do primeiro ano do caminho sinodal, já sobressai a expressão de algumas expectativas fundamentais, que é possível colocar em relação com as mudanças do mundo atual. Apoio-me na síntese realizada pela Igreja na França, mas haveria entrelaçamentos com o trabalho sinodal de outras regiões do mundo. Nota-se, primeiro, uma necessidade de fraternidade, de escuta e de diálogo no seio das comunidades cristãs, uma necessidade de compreensão e de reconhecimento mutual entre homens e mulheres, entre os batizados leigos e pastores. Essa necessidade traduz a esperança de que a Igreja possa ser um espaço de resistência e de contradição evangélica de encontro à polarização, à violência entre os sexos e as gerações, frequentemente exacerbada pela hypersocialização das emoções na sociedade digital. Nota-se, em seguida, uma necessidade de acolhimento aos mais frágeis, de um modo que testemunhe a opção preferencial pelos pobres e os excluídos. Isso é claramente vinculado à necessidade de conversão ecológica e de simplicidade, de sensibilidade ativa à vulnerabilidade de nosso planeta à consumação ultrajante dos recursos limitados e não renováveis. No espírito da Encíclica Laudato sí, as sínteses sinodais estabelecem uma ligação direta entre a atitude em relação à terra e em relação às pessoas mais frágeis. Nota-se, enfim, uma necessidade de deixar mais espaço à espiritualidade, à escuta da Palavra de Deus em comunidade tanto quanto como na solidão; à oração, ao silêncio. Essa necessidade traduz a esperança que a Igreja possa ser um espaço em que se testemunhe que Deus merece o primeiro lugar, que o homem não se alimenta somente de imagens, de interconexões com o resto do mundo, nem de uma soma de informações que ele não consegue mais de qualquer modo engolir e que o deixam insatisfeito. Em nossa época de aceleração generalizada, temos mais do que nunca necessidade de interromper o fluxo incessante de palavras, de sons, de imagens e de informações, e, entretanto, não sabemos mais fazer isso. A maravilhosa palavra de Jesus ressoa, então, em nossos corações: “Vinde à parte, para algum lugar deserto e descansai um pouco." (Mc 6, 31). A missa dominical refaz nossas forças nos oferecendo outras músicas e outras palavras que nos fazem perceber o grande desejo que Jesus tem de nos partilhar sua Palavra de vida e de comer a Páscoa conosco (LC 22, 15 e Desiderio desideravi, 2022).  

b) As famílias se esforçam para realizar o que elas esperam da Igreja

Por meio dessas necessidades fundamentais expressadas durante o caminho sinodal, é possível reconhecer igualmente o que as famílias tentam, na medida do possível, realizar ao nível delas. A partir disso, as realidades familiares podem ser olhadas como espaços onde se elaboram os caminhos de santidade, com a graça de Deus. Fundar uma família no mundo polarizado que conhecemos atualmente é mais do nunca dar corpo ao desejo de fraternidade que habita o coração do homem. Com efeito, a família não se contenta em satisfazer as necessidades afetivas e sexuais do ser humano. Ela lhe permite transcendê-los através do compromisso em fazer existir um espaço de paz e de alegria por meio do reconhecimento mútuo e da fidelidade. A Bíblia não ignora que as famílias estão cotidianamente tomadas pelo egoísmo e pelo ciúme que podem conduzir à violência e à morte (Cain e Abel, Jacó e seus irmãos), mas ela conta que Deus não cessa de renovar sua aliança de um modo que vem curar as feridas e dar de novo um futuro lá onde tudo parece perdido. Fundar uma família no mundo fraturado que é o nosso atualmente é também oferecer às pessoas próximas um espaço de solidariedade e de proteção contra os revezes da vida. A despeito de suas falhas, as famílias permanecem globalmente os fortíssimos lugares de solidariedade que amenizam as insuficiências das ajudas do Estado e da coletividade, notadamente em relação às pessoas idosas sem recursos, os desempregados, as pessoas com deficiência, os feridos da vida tendo conhecido toda sorte de rupturas que os deixaram sós e desamparados na existência, e isso tanto em relação aos membros da família como em relação aos de fora. As famílias são e permanecem os lares da hospitalidade e da generosidade. Em meio aos jovens casais atualmente, essa disponibilidade à generosidade se expressa também em relação ao planeta na medida em que eles estão prontos a modificar seus hábitos de vida para os tornar ecoresponsáveis e solidários, e para transmitir aos seus filhos esse sentido de ecologia integral. Fundar uma família no mundo secularizado que é o nosso atualmente é, enfim, oferecer aos filhos, mas também às pessoas isoladas e em situação de fragilidade, o presente de uma educação religiosa e ser um sustento espiritual. Existe, com efeito, um constato antropológico ao longo das épocas e culturas: o ser humano não entra totalmente sozinho no mundo religioso, mas ele tem necessidade de uma iniciação e de um acompanhamento comunitário. O texto bíblico de referência para as famílias que assumem seriamente essa tarefa de iniciar seus filhos na relação com o Deus vivo continua sendo o chamado do jovem Samuel (1 Sm 3, 3-10): por meio da figura do sacerdote Eli, que compreende que o Senhor se dirige a Samuel e o guia com respeito, depois se retira, desenha-se o papel do adulto na iniciação cristã dos filhos. Antes mesmo que ele seja iniciado na fé, ele se coloca à disposição para se colocar ao serviço que ele recebeu.  

c) Entrar numa dinâmica de aprendizado mútuo

A tarefa pastoral não se limita a constatar a obra de santidade que se opera nas famílias, mas ela consiste antes de tudo a se esforçar para multiplicar, o que supõe acolhê-la, nomeá-la e levá-la mais longe. Em toda parte, os pedidos por casamento desmoronam, enquanto o desejo de família permanece forte. Nesse contexto, importa acolher tudo o que se faz de bom nas famílias concretas, nomear os valores de fraternidade, de solidariedade e de educação religiosa à obra nas realidades familiares, e anunciar que se manifesta através delas a ação misteriosa da graça de Deus que penetra todo amor verdadeiro. Mas não se pode ficar só nisso. A obra de evangelização consiste em ousar anunciar o que se opera numa família por meio da graça específica do sacramento do matrimônio: pelo ministério da Igreja, todas as realidades familiares são retomadas pelo próprio Cristo no grande movimento de amor de sua vinda entre os homens, de seu anúncio do Evangelho aos pobres, de sua morte na Cruz, de sua ressurreição e de sua ascensão ao Céu. Assim sendo, o sacramento do matrimônio dá a graça de crescimento na santidade por meio das realidades familiares de cada dia. Quanto mais as comunidades cristãs se mostram acolhedores das realidades familiares por meio das missas intergeracionais, das pregações apropriadas, dos tempos de festa acessíveis às famílias, mais a proposta do matrimônio aparecerá credível e mais as famílias, qualquer que seja a sua configuração, se deixarão tocar para dar um passo a mais. Importa igualmente que não sejam deixados à beira do caminho as pessoas sós em razão da viuvez ou de uma solteirice não escolhida, as mães solteiras ou abandonadas que criam seus filhos sozinhas, as famílias reconstituídas, e aquelas tocadas pela homossexualidade a vários títulos, e toda outra forma de marginalidade familiar. Os casais que se apresentam atualmente ao matrimônio na Igreja, seguramente menos numerosos, são, entretanto, mais conscientes de que o casamento é uma escolha difícil que requer um aprendizado permanente para evitar o drama do fracasso e do divórcio. As comunidades eclesiais deveriam capitalizar a partir desse desejo de aprender e de ter êxito na vida de família. Elas deveriam decididamente se comprometer com a formação dos casais e das famílias ao longo da vida. A paróquia pode ser o lugar de tais propostas, mas há também os movimentos familiares que merecem encontrar seu lugar dentre as atividades paroquiais, ou ainda os lugares de peregrinação que podem oferecer tempos fortes e espaços de conversão por meio de partilhas em pequenos grupos e do sacramento da reconciliação. O caminho sinodal até 2023 faz sobressair a grande necessidade que as famílias têm de encontrar espaços eclesiais que produzam algo em comum e não julgamento, inclusão e não exclusão, um verdadeiro sustento no caminho familiar rumo à santidade. Essa necessidade de algo em comum é tão significativa que as comunidades da Igreja têm elas próprias necessidade de aprender a fraternidade e a solidariedade, e inventar novos caminhos de iniciação cristã num mundo que mudou muito. Ora, as famílias estão na linha de frente nesses novos projetos. A Igreja tem, portanto, necessidade de aprender das famílias, ao mesmo tempo que as famílias têm necessidade de serem acompanhadas pelas comunidades eclesiais. Importa entrar mais decididamente numa dinâmica sinodal de aperfeiçoamento mútuo. É-nos necessário inventar, conjuntamente, uma Igreja mais sinodal e, assim, mais discípula, e, a partir disso, mais capaz de acompanhar o aprendizado das famílias numa época “onde se rompem todos os esquemas” (Amoris Laetitia, n. 37).   3 – Promover novas práticas familiares de santidade Para terminar, gostaria de explorar alguns exercícios de santidade a serem promovidos na Igreja para responder às necessidades que geram as transformações em curso no mundo atual, e para levar ao seu cumprimento os itinerários de santidade observáveis nas famílias da atualidade.

a) Cultivar a ressonância para lutar contra a aceleração

O filósofo Hartmut Rosa não se contenta em criticar o modelo social que se organiza em torno à “aceleração”, mas ele se detém também a explorar os processos de resiliência que os cidadãos colocam em prática para se proteger e para resistir o quanto eles podem. Pode-se resumi-los por meio daquilo que Rosa designa como uma busca de “ressonância” (Rosa, 2018). A ressonância, ele explica, é uma espécie de “vínculo de amor” que se estabelece com os outros, a natureza e a sociedade de tal modo que “alguma coisa como uma corda se coloca a vibrar entre nós e o mundo”. Ele observa, com efeito, que, em face das mesmas contrariedades sociais, os indivíduos reagem de modo diferente. Alguns são totalmente esmagados pelo fenômeno geral de aceleração, enquanto outros desenvolvem novas competências: são as aptidões à “ressonância” que lhes permitem tomar distância, dar mais densidade à sua relação com o mundo, e construir assim um caminho de sentido sem se deixar apanhar pelas solicitações externas. Assim sendo, eles rompem com a lógica de acumulação de recursos e com o ciclo infernal da competição para obter isso. Rosa preconiza um aprendizado coletivo dessas atitudes alternativas que colocam os indivíduos em relação uns com os outros, criando um mundo comum e induzindo processos efetivos de transformação social. Isso supõe um aprendizado de sentido crítico por meio de um exame lúcido das relações com o mundo, de modo a fazer a diferença entre aquelas que têm êxito e aquelas que não. Mais fundamentalmente, Rosa tem a ambição de elaborar uma antropologia do homem como “ser de ressonância”.[2] Para levar as emoções ao seu desenvolvimento numa autêntica presença ao outro, é preciso aprender a se extrair do fluxo contínuo das solicitações externas. Essa exigência fundamental não é nova, haja vista que no século passado, ela tinha conduzido o Padre Caffarel a fazer do “dever de se sentar” o pilar das Equipes de Nossa Senhora: ele sabia que os casais têm necessidade de partilhar em profundidade as coisas essenciais da vida, e de estarem atentos à “ressonância” interior que elas têm em si e no outro. Atualmente, entretanto, a pressão que a sociedade do digital faz padecer aos afetos impõe às famílias um trabalho muito mais coletivo sobre as emoções. A atenção ao ciclo das emoções, à sua ressonância na vida interior, permite lutar contra a violência feita ao outro, à natureza e a Deus, quando são ignoradas as vias de uma comunicação em profundidade. As famílias podem se tornar laboratórios de um mundo comum mais respeitoso do outro, quando elas assumem práticas inovadoras que, sem renunciar às oportunidades de relação ofertas pelas tecnologias digitais, organizam, entretanto, tempos de desconexão, de gratuidade, de alegrias simples, de comunicação em profundidade por meio das mediações corporais, físicas e espirituais próprias da vida familiar.

b) Discernir o justo equilíbrio através das tensões que atravessam a sexualidade

A difusão dos aparelhos digitais, associada ao mercantilismo da pornografia, modifica a relação dos jovens com a sexualidade, apresentada como um conjunto de ações orientadas para a performance e o prazer, mas desconectadas do verdadeiro amor. Nesse contexto, o papel das famílias é essencial, pois elas são os lares do amor, mas não é simples. Elas devem, com efeito, inventar novas maneiras de apresentar a sexualidade, sem pretender muito, mas se preservando também de não fazer nada. É preciso discernir. A família é, com efeito, o primeiro espaço onde se pressente que a sexualidade é uma realidade importante, atraente e inquietante às vezes, em todo caso misteriosa. Crescendo e ganhando maturidade, descobre-se que ela é um terreno instável de forças, frequentemente antagónicas, donde surgem, porém, a vida e o amor. A sexualidade é também um espaço de pudor e de silêncio, em que faltam as palavras para expressar o que, entretanto, se sabe, ou seja, que as pessoas que mais amamos têm suas fragilidades e às vezes suas falhas, assim como elas têm suas grandezas e coragem de as assumir. Para não abandonar as famílias a essa obra de verdade que lhes incumbe, a Igreja deve ousar evocar esse caos no qual a fé proclama que Deus tem a capacidade de fazer surgir a vida, com a colaboração dos homens e das mulheres que trabalham para humanizar as paixões que os habitam. Nesse trabalho que deve ser feito ao longo da vida sobre a sexualidade, o encontro com as outras culturas é importante, pois isso permite tomar distância e melhor perceber que o amor e a sexualidade são atravessados por um conjunto de tensões fecundas, que as diferentes culturas agenciam de modo específico: entre a intimidade e o público; entre a proximidade e a distância; entre o domínio de si e o não-domínio; entre o casal e a família; entre a família e o trabalho. Fundar uma família significa fazer encontrar duas culturas familiares que organizam de modo diferente a gestão dessas tensões. Quando as duas famílias pertencem a ares culturais e regionais diferentes, as diferenças são redobradas. É precisamente a ocasião de iniciar um diálogo que será necessário para o equilíbrio do casal, pois isso os ajuda a refletir e a discernir conjuntamente o modo próprio da sua nova família de atravessar as tensões constitutivas da sexualidade. Deste ponto de vista, penso que a Igreja do Brasil tem muito a oferecer à Igreja universal, pois ela oferece um ponto de encontro único entre as diferentes culturas, e ela conta com numerosas famílias interculturais. É um campo importante da pastoral familiar, que nos ajuda também no futuro a acolher melhor as pessoas pertencentes às minorias, quaisquer que sejam.

c) À escola dos santos, caminhar juntos no caminho da santidade

Para atuar num projeto, tem-se a necessidade de não se estar só. É necessária uma equipe bem coordenada. Comecei essa conferência convidando os agentes da pastoral do Brasil a se colocar à escuta da obra de santidade que as famílias realizam como elas podem, com seus limites, num mundo em rápida transformação. Terminarei dizendo que a Igreja lhes oferece uma multidão de santos para que essa obra de santidade se realize ainda mais em equipe. Dou de novo as três características do caminhar no caminho de santidade: uma grande ambição evangélica, um sólido realismo e a coragem de inovar. Minha proposta final é que as famílias devem ser encorajadas a escolher santos que sejam para elas estímulos acessíveis, de tal modo que eles possam sustentá-las na sua ambição cotidiana. Quando alguém se interessa de perto por um santo, aprende-se o realismo, pois se familiariza com a sua história concreta, seu meio, os problemas de sua época, a rede de relações que lhe permitiu encontrar o Senhor ressuscitado, as pessoas que o ajudaram a realizar seu projeto de vida no seguimento de Cristo. Quando se faz equipe com o santo, aprende-se que a caminhada em direção à santidade é um trabalho de equipe. E escolhe-se em fazer equipe com esse santo ou aquela santa, se escolhe ele ou ela como um companheiro(a) de estrada e como intercessor. Beatificando um primeiro casal em 2001, Luiz e Maria Beltrame Quattrocchi, o Santo Papa João Paulo II quis dar um encorajamento aos esposos no caminho de santidade. Por ocasião do Encontro Mundial das Famílias, as relíquias dos santos esposos Luiz e Zélia Martin foram levadas a Roma desde Alençon, com aquelas da filha deles, Santa Teresinha de Lisieux. Esses dois casais que a Igreja nos dá como modelos e como intercessores foram particularmente atentos a servir a vocação humana e religiosa de seus filhos, a praticar a hospitalidade familiar e o serviço dos pobres, a se comprometer na vida social. Na época deles, eles fizeram de suas famílias um lugar de criatividade evangélica e social. Escolher santos como companheiros pode ser feito no segredo do coração, mas pode ser também uma bela atitude de casal e de família. Trata-se, então, de escutar a afeição que seu cônjuge ou seus filhos têm por um santo em particular, sabendo que essa afeição é o sinal de um trabalho da graça de Deus no outro, que chama nossa colaboração ativa. Escolher um santo pode igualmente ser uma atitude comunitária. Permitam-me dar um exemplo de um novo santo francês, Charles de Foucauld. O milagre que permitiu obter sua canonização se realizou no colégio católico de uma nova paróquia, em Saumur, que tinha escolhido o Bem-aventurado Charles de Foucauld como padroeiro. Nas proximidades do centenário de sua morte, a paróquia organizou uma novena para obter um milagre. Ao entardecer do dia anterior desse centenário, um jovem trabalhador que sofreu uma grave queda do telhado da capela da escola foi salvo milagrosamente. Esse exemplo recente nos ensina a força da oração comum. Mais um detalhe: o jovem trabalhador não era cristão e até o momento ele não se tornou. Ele é a imagem dos Tuaregues (povo nômade africano) a quem Charles de Foucauld tinha consagrado sua vida de serviço e testemunho pela oração. O fato de que Deus, pela intercessão de um santo, possa doar largamente para além das fronteiras da Igreja visível deve nos encorajar a rezar por todas as famílias, onde quer que elas se encontrem no seu caminho de vida e de santidade, e nos colocar ao seu serviço. O Filho de Deus veio a este mundo não para os que estão bem, mas para aqueles que têm necessidade do médico. A Igreja de Cristo não deve jamais perder essa preciosa bússola. Eu lhes agradeço a atenção! ------- [1] Tradução de Prof. Dr. Pe Rafael Cerqueira Fornasier. [2] Harmut Rosa, Résonance. Une sociologie de la relation au monde [2016], Paris, La Découverte, 2018.